segunda-feira, 17 de maio de 2010

Resenha do texto de Marco Silva

Formação de Professor

De Anísio Teixeira à Cibercultura: Desafios para a formação de Professores Ontem, Hoje e Amanhã.

Marco Silva
No texto Mestres de amanhã1 Anísio Teixeira resume sua inquietação com a formação de professores em seu tempo e em seu amanhã. Nesse texto está a expressão de uma preocupação hoje muito generalizada, porém pouco concretizada em investimentos diretos na formação do professor. Essa preocupação pode ser explicitada assim: a educação para todos não pode ficar alheia à revolução das ciências e dos meios de comunicação de massa; a formação dos mestres de amanhã precisaria romper com a pregnância do tradicional, engajando-se no enfrentamento dos descaminhos da cultura tecnológica e consumista e na apropriação do pensamento científico e dos meios de comunicação, de modo a dominá-los e a servir-se deles, assegurando a todos a educação capaz de enriquecer a vida no planeta.
¤ Expor aos estudantes uma diversidade de abordagens sobre conteúdos de aprendizagem e convidá-los a apreciar, sentir, rever, discutir, motivando a análise e a humildade diante dos conhecimentos já sistematizados e dos problemas que defrontam a civilização ocidental na nova era industrial e midiática. A sala de aula “lembrará muito mais um laboratório, uma oficina, uma estação de televisão, do que a escola de ontem e ainda de hoje”.17 E o mestre não será “o antigo mestre-escola a repetir nas classes um saber já superado”. Ele “lembrará muito mais o bibliotecário apaixonado pela sua biblioteca, o conservador de museu apaixonado por seu museu, e no sentido mais moderno, o escritor de rádio, de cinema ou de televisão apaixonados pelos seus assuntos, o planejador de exposições científicas”.18
¤ Lançar mão de equipamentos e de meios de comunicação e oferecer a cada jovem, antes de terminar o nível secundário de estudos um quadro da cultura contemporânea, desde os seus primórdios até os problemas e complexidades dos dias presentes. Oferecer a contribuição excelente de professores especializados “através dos recursos da televisão, do cinema e do disco, podendo levar todos os jovens a ver e ouvir, ou, pelo menos, a ouvir, esses especialistas e, a seguir, com o professor da Classe, desdobrar, discutir e completar as lições que grandes mestres desse modo lhe tenham oferecido”.19 “O mestre seria algo como um operador dos recursos tecnológicos modernos para a apresentação e o estudo da cultura moderna”.20 Em suma, estando o mestre “rodeado e envolvido pelo equipamento e pela tecnologia produzida pela ciência, não lhe seria difícil ensinar o método e a disciplina intelectual do saber que tudo isso produziu e continua a produzir.”21
Anísio31 antecipou inquietações que pouco chegaram ao que ele chamava de “educação comum do homem comum”. seu texto mantém um desconcertante tom profético na medida em que denuncia algo muito ignorado na formação de professores: a educação escolar perde centralidade para a mídia definida pela propaganda, pelo entretenimento, transportando ao mesmo tempo senso e contra-senso; a pedagogia da transmissão não tem lugar quando tudo o que é sólido cada vez mais se desmancha na excessividade caótica das informações fragmentadas nos interesses mercadológicos.
Pouco se fez para superar a prevalência da pedagogia da transmissão. O resultado desse descaso é a sala de aula, hoje, cada vez mais sem atrativos e alunos cada vez mais desinteressados no seu modelo clássico baseado em memorização e reprodução. As últimas conclusões do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica do MEC)46 confirmam esse grave problema, que certamente não se restringe ao ensino básico. Sabemos que a pedagogia da transmissão prevalece também na universidade e nos cursos a distância. O próprio Ministério da Educação reconheceu o descompasso entre o modelo tradicional de escola e os recursos informacionais hoje disponíveis no cotidiano dos estudantes. Em destaque, pelo menos duas explicações para o crescente desinteresse pela sala de aula:
¢ O professor se sente o todo-poderoso, repete conceitos e não sabe interagir com os alunos; os conteúdos estão distantes da realidade e devem ser decorados e cobrados em provas.
¤ A oferta atual de informação e conhecimento é cada vez maior e melhor fora da sala de aula, graças aos novos recursos tecnológicos, em especial a internet e a multimídia interativa.47
Cibercultura é o conjunto de técnicas, de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento da internet como novo meio de comunicação que surge com a interconexão mundial de computadores. Para Lévy51, cibercultura é o principal canal de comunicação e suporte de memória da humanidade a partir do início do século 21; é o novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização e transação da informação e do conhecimento.
Há um rompimento paradigmático com o reinado da mídia clássica baseada na transmissão em massa. Enquanto esta efetua a distribuição para o receptor massificado, a cibercultura, fundada na codificação digital, permite ao indivíduo teleintrainterante a comunicação personalizada, operativa e colaborativa em rede multidisciplinar.
A cibercultura emerge com a passagem do computador pessoal (PC) para o computador coletivo (CC), isto é, conectado à internet. O pesquisador da cibercultura A. Lemos vê aqui a passagem do computador apolíneo, individualista e austero ao computador dionisíaco, coletivo, efervescente, multiconectado em rede on-line ou ciberespaço.52
O computador conectado e a internet criam a nova ambiência informacional e dão o tom da nova lógica comunicacional que toma o lugar da distribuição em massa própria da fábrica, da escola e da mídia clássica (rádio, imprensa e TV) até então símbolos societários. Na cibercultura a produção para a massa cede espaço à produção operacionalizada em redes multidisciplinares definidas por comunidades de interesses.
Insisto na pergunta oportuna de Anísio:53 “Que haverá já hoje que nos possa sugerir o que poderá ser a escola de amanhã?”. Hoje temos a cibercultura. Distanciados dela os professores não se dão conta da mudança paradigmática em informação e comunicação que se opera em nosso tempo. Em síntese, eles perdem ou retardam a urgente percepção de modificações decisivas na informática, na esfera social e no cenário das comunicações:
¤ Mudança na tecnologia informática. A tela do computador não é espaço de irradiação, mas ambiente de adentramento e manipulação, com janelas móveis e abertas a múltiplas conexões. As herméticas linguagens alfanuméricas são substituídas pelos ícones e janelas móveis que permitem interferências e modificações na tela. O computador desconectado projetado para o indivíduo cartesiano, solipsista, deu lugar ao computador comunitário, associativo, cooperativo.
¤ Mudança na esfera social. Há um novo espectador menos passivo diante da mensagem mais aberta à sua intervenção. Ele aprendeu com o controle remoto da TV, com o joystick do videogame e agora aprende com o mouse. Essa mudança significa emergência de um novo leitor. Não mais aquele que segue as páginas do livro de modo unitário e contínuo, mas o que salta de um ponto a outro fazendo seu próprio roteiro de leitura multidisciplinar. Não mais aquele paciente que se submete às récitas da emissão, mas aquele que, não identificando-se apenas como receptor, interfere, manipula, modifica e assim, reinventa a mensagem. Sinais dessa mudança são os games em rede on-line. Seus roteiros estarão cada vez mais abertos, depositando nas mãos dos jogadores a capacidade de criar, de administrar sua própria aventura.
¤ Mudança no cenário comunicacional. Ocorre a transição da lógica da distribuição (transmissão) para a lógica da comunicação (interatividade). Isso significa modificação radical no esquema clássico da informação baseado na ligação unilateral emissor-mensagem-receptor. O emissor não emite mais no sentido que se entende habitualmente, uma mensagem fechada, ele oferece um leque de elementos e possibilidades à manipulação do receptor. A mensagem não é mais “emitida”, não é mais um mundo fechado, paralisado, imutável, intocável, sagrado, ela é um mundo aberto, modificável na medida em que responde às solicitações daquele que a consulta. O receptor não está mais em posição de recepção clássica, ele é convidado à livre criação, e a mensagem ganha sentido sob sua intervenção.
Desde o Iluminismo a escola é colocada como o lugar privilegiado para a formação da cidadania. Porém há uma dificuldade de base para a realização dessa função social da escola: o modelo de sala de aula baseado no falar-ditar do mestre iluminado e no silêncio nem sempre passivo do a-luno (sem luz). Ressignificar a educação na cibercultura significa superar essa dificuldade. O professor poderá modificar sua atuação em sala de aula investindo em pelo menos três fundamentos inarredáveis em educação:
¤ Participação coletiva. Comunicar supõe participar. Participar não é apenas responder “sim” ou “não” ou escolher um opção dada, significa interferir, modificar a mensagem. Participação coletiva quer dizer interação colaborativa, co-criação. Aprender supõe participação ativa na construção do conhecimento.
¤ Dialógica. A comunicação é produção conjunta da emissão e da recepção. É co-criação, os dois pólos codificam e decodificam. Assim “A” modifica “B” e “B” modifica “A”. Por isso, Paulo Freire54 diz: a educação autêntica não se faz de “A” para “B” ou de “A” sobre “B”, mas de “A” com “B”.
¤ Multidisciplinaridade. A comunicação supõe múltiplas redes articuladoas de conexões e liberdade de trocas, associações e significações. O professor não transmite, ele propõe o conhecimento oferecendo múltiplas informações (em imagens, sons, textos, etc.). Ele oferece múltiplos enfoques disciplinares convocando seus alunos ao trânsito livre, associativo, criativo capaz de gerar novas sínteses entre as disciplinas (inter) e para além das disciplinas (trans).
Na cibercultura o computador e a internet potencializam esses fundamentos. É preciso enfatizar que a transição da TV para o computador on-line não é apenas uma evolução da técnica. Além disso, temos mudança paradigmática que favorece a expressão desses fundamentos. O chip, o processador baseado no aporte hipertextual,55 tem em sua natureza digital a disponibilização para tais fundamentos. Será preciso, portanto, verificar a validade do hipertexto em educação:
¤ O professor precisará se dar conta do hipertexto enquanto escritura não seqüencial, como montagem de conexões em rede que permite e exige uma multiplicidade de recorrências, transformando a leitura em escritura.
¤ O professor precisará saber que o hipertexto (mais concretamente o computador, a internet) não vem substituir, mas potencializar seu ofício. Com o hipertexto ele é convocado a passar de mero transmissor de saberes a arquiteto de percursos, formulador de problemas, provocador de interrogações, coordenador de equipes de trabalho, sistematizador de experiências, e “memória viva de uma educação que, em lugar de aferrar-se ao passado [transmissão], valoriza e possibilita o diálogo entre culturas e gerações”.56
O amanhã de Anísio chegou e os mestres de hoje caminham pouco na maestria por ele vislumbrada. Muitos negligenciam a TV e outros tantos resistem ao computador e à internet. A TV está no mesmo paradigma da pedagogia da transmissão. Negligenciá-la é surpreendente por isso. Já a tecnologia e a mídia digitais, fundadas em novo paradigma comunicacional, podem de fato intimidar.
Contudo, é preciso assumir: em nosso tempo pouco se tem feito para qualificar o professor à altura da complexidade que nos cerca. Há quatro décadas, Anísio expressou sua sincera inquietação. No entanto, temos que dar nossas mãos à palmatória da sua crítica mais veemente, e repetir: “ainda não fizemos em educação o que deveria ser feito para preparar o homem para a época a que foi arrastado...”; “na educação comum do homem comum os progressos são os mais modestos”.

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